
Nasci e cresci na periferia da zona sul de São Paulo, em um dos tantos micro-bairros surgidos entre o asfalto de Interlagos e a lama do Grajaú, e mesmo tendo vendido minha alma ao rock no início da adolescência, nunca fui cego e muito menos surdo ao que acontecia à minha volta.
Aconteceu com a dance music – acid house, jungle, techno, etc – e, claro, com o insurgente rap, esse também nascido e crescido na perifa. O primeiro contato veio através da coletânea Hip-hop cultura de rua, da qual pouco me lembro, mas é impossível esquecer o impacto causado pela primeira audição de Holocausto urbano, estreia em disco dos Racionais MC’s, de 1990. O álbum trazia faixas como “Pânico na zona sul” e “Hey boy”, e abriu – à base de mensagens diretas rimadas sobre bases simples – a cabeça de muita gente ao rap. Digamos que começou um trabalho, concluído três anos mais tarde quando Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edy Rock lançaram, via Zimbabwe Records, Raio X do Brasil.
Produzido por Newton Carneiro, Wander e pelo próprio grupo, o vinil foi lançado oficialmente em uma festa na quadra da escola de samba Rosas de Ouro – tradicional reduto de ‘sambistas de posse’ e bastante longe das quebradas da ZS paulistana, mas enfim…
Raio X do Brasil traz toda a agressividade de Holocausto, com letras igualmente diretas expondo toda a insana lógica que é a vida nos bairros pobres de uma grande cidade. Drogas, violência estatal, preconceito racial e social, tudo dito sem meias palavras ou meias verdades; mas, numa comparação entre os dois discos, Raio X é melhor escrito, com letras mais longas e contundentes. E musicalmente, com samples de Curtis Mayfield, Marvin Gaye, The Meters e Tim Maia enriquecendo as bases para suas rimas, mostra uma evolução dos Racionais também como produtores.
Detalhes estéticos e/ou técnicos à parte, Raio X do Brasil definitivamente tirou o rap dos guetos e tornou o nome Racionais MC’s uma entidade do gênero no país, abrindo caminho para programas de TV – como o Yo MTV -, de rádio e para um sem número de outros rappers, de Gabriel o Pensador a Câmbio Negro.
Dali em diante o ritmo e a poesia deixariam as favelas em direção aos jardins; dessa época, a imagem mais clara (e absurda) que me vem à cabeça é a dos mesmos playboys massacrados por Mano Brown em “Fim de semana no parque” escutando Racionais em suas ‘carangas do ano’, num paradoxo que dura até hoje.
O nosso juri é racional, não falha…

